Em junho é comemorado o mês do orgulho LGBTQIA+. A época relembra as revoltas que deram origem às grandes paradas gays, no início dos anos 1970, nos EUA. No Brasil, um dos países que mais matam por causa da orientação sexual.
Entenda um pouquinho mais da sigla LGBTQIA+ através da visão de Beta Boechat.
Beta Boechat é ela, ele, ile, elu. Todos os pronomes são possíveis. Pouco depois dos 30 anos, a publicitária entendeu que nunca conseguiu se encaixar em nenhum dos gêneros tradicionais, masculino e feminino. E as tentativas de assumir um padrão masculino só estavam trazendo sofrimento. Então, passou a se definir como não binária.
Como não binária, Beta está tanto dentro da letra Q quanto da letra T da sigla LGBTQIA+. É transgênero, porque não se identifica com o gênero com o qual foi designada ao nascer. E também está no grupo queer, aquele que reúne todas as pessoas que não se encaixam na sociedade. Beta explica que, nos Estados Unidos, as pessoas chamadas de queer eram aquelas que viviam fora das normas, como prostitutas, moradores de rua, artistas.
“No Brasil, o queer tem muito mais a ver com a não identificação de gênero. Com o entendimento de que o gênero é coisa construída culturalmente, e o queer tá aqui para mostrar que a gente pode pensar o gênero de outra maneira”, conta.
Beta Boechat, 32 anos, fala sobre não binariedade e linguagem neutro: ‘Por que é tão difícil uma sociedade que possa abraçar todas as pessoas?’ — Foto: Fabio Tito/G1
Ela diz que, quando era criança, sempre teve dificuldade para se encaixar no grupo dos meninos ou das meninas. “Na puberdade, eu não entendia aquela efervescência sexual. E não conseguia me conectar com aquilo. Fui perder minha virgindade com 27 anos, porque, por muito tempo, não conseguia me entender.”
A partir dos 15 anos, percebeu que, se não se enquadrasse dentro de uma estrutura masculina, ia estar em risco, numa posição de vulnerabilidade. Deixou a barba crescer, adotou uma postura sisuda, que não se emociona.
“Durante todo esse tempo, eu vivi com uma sensação de infelicidade, incompletude, que eu acredita que era comum… Todo mundo tem que abrir de algo pelo que os outros esperam. Eu não me identifico como uma pessoa 100% homem, nem 100% mulher. A tentativa de me enquadrar foi o que sempre me trouxe infelicidade.”
Beta teve depressão, crises de ansiedade, ataques de pânico e desenvolveu fobia social. “De uns 5 anos para cá, comecei a fazer mais terapia. Não dá para aguentar tudo. Eu cheguei num processo que ou eu quebrava ou tentava descobrir outra coisa.”
A publicitária conta que, há muitos anos, fala sobre gordofobia na internet, e nunca teve vergonha ou problema com as críticas. Mas a enxurrada de ódio que recebeu após se identificar como não binária foi um choque. “Muita gente questionava se eu estava fazendo isso para aparecer. A saída do armário é sempre uma coisa muito traumática. É sempre um processo muito violento, de a gente estar se inventando e, ao mesmo tempo, dando satisfação pros outros.”
Beta Boechat trabalha com publicidade e produção de conteúdo em São Paulo — Foto: Fabio Tito
Muita gente acha que a não binariedade surgiu na internet, mas Beta lembra que isso não é novidade, apenas está aparecendo mais agora.
“É muito difícil para uma pessoa como eu, com 32 anos, entender com 15 o que era não binariedade. Hoje a gente vê as crianças com outra visão. Tanto que tem vários artistas se colocando como pessoas não binárias. Teve o Sam Smith, teve a Demi Lovato…”
Beta usa e aceita qualquer pronome para falar de si mesma. Mas acha importante a discussão sobre linguagem neutra. “É uma questão política, esse é um debate importante para ser feito. Tem pessoas que gostam de um pronome específico, e elas vão adorar que você pergunte para elas. A dica para saber qual é o pronome da pessoa é, primeiro, ver como ela se refere ou pergunte.”
Em alguns países, como Alemanha, Estados Unidos e Canadá, cada vez mais pessoas estão marcando nas redes sociais, currículos e e-mails os pronomes pelos quais elas preferem ser chamadas. Muitos dos não binários preferem “they” e “them”, que são pronomes neutros na língua inglesa, em vez de “he” (ele) ou “she” (ela). Mesmo pessoas cisgênero (aquelas que se identificam com o gênero marcado na certidão de nascimento) estão usando a estratégia, para difundi-la.
No Brasil, tem crescido na internet o uso da vogal “e” nas palavras que denotam gênero. Por exemplo: todos vira “todes”, bonita vira “bonite”, amigo vira “amigue”. A letra “x” já chegou a ser usada para grafar o gênero neutro, mas está em desuso pela dificuldade de pronúncia e também porque atrapalha o funcionamento de softwares usados por pessoas cegas para ler a internet.
A professora Liliana Bastos, do departamento de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio (PUC-Rio), diz que a discussão sobre a neutralidade é importante, porque quebra o mito de que a língua é sagrada e imexível. “Toda linguagem é socialmente contextualizada. Não existe uma língua portuguesa. Existe, sim, a norma culta, mas mesmo isso vai mudando conforme o tempo e conforme a sociedade também muda.”
“A discussão sobre linguagem neutra é boa porque raramente a gente se dá conta de como a linguagem é sexista, patriarcal. A gente ainda usa ‘o homem’, para falar do genérico, por exemplo”, afirma Liliana.
Por outro lado, na opinião dela, algumas estruturas neutras que estão sendo propostas parecem complexas para assimilação da população, como terminações de palavras e concordâncias totalmente diferentes. “Usar algumas palavras neutras, como todes e amigues, já é uma mudança interessante. Isso já vai provocando uma conscientização sobre o sexismo na linguagem.”
Beta concorda com essa ideia, e diz que os ativistas não pretendem baixar um decreto e dizer ‘agora todo mundo precisa escrever de forma diferente’. A intenção é colocar o tema em debate.
“As pessoas falam, ah, mas estão querendo inventar mais coisas… Quantos formulários não colocam até hoje ‘senhor’, ‘senhora’, ‘senhorita’…”, comenta Beta. “A língua é viva, ela muda conforme a sociedade muda. E por que é tão difícil uma sociedade que queira abraçar todas as pessoas? Que diferença vai fazer para você tratar uma pessoa trans da maneira como ela está pedindo? Não é difícil. Brigar é bem mais difícil.”